domingo, 31 de julho de 2022

Ciclame

Com vigorosas pegadas de titã
Vou no encalce do ciclame
Preciso de invernáculas flores de ópio
Nesta itinerância entre as raízes e o armagedão
Levo na mão todas as conjugações adversativas que posso
Guardo na alma um ninho de pássaro
Que me desprende os olhos do choro.
Nego a palavra poente
Nada me detém
Quem poderia deter o único sobrevivente
Do incontornável naufrágio da razão?
Escarlate, carmesim, vermelho, encarnado, sangue...
É a minha cor.
Em nada se distingue de uma rosa
Azul que nem centáurea de Novalis.
A verdadeira cor do mel

Encantamentos

Dança nua para mim.
Tira o preconceito e o peso do mundo!
Dança nua para mim.
Tira a dor, o medo, a tristeza, o cansaço.
Mas, dança nua para mim...
Livre e de sorriso despregado ao vento!
Apenas com o que tu és.
Encanta-me.

Encanta-te.

O Raiano

Existe ainda nos olhos
onde mora a infância
incólume no planalto
ali segura o tempo
com um canto na voz
e um dedo na centelha da metáfora

Sob a rigorosa trajetória
do voo do estorninho
arou o azul da utopia
abrigou no peito
lugares rasos de segredos
e a ignorância foi obrigada
a suicidar-se nas suas mãos

Nos pulmões do mediterrâneo
arrastou um inflamado violino
sobre águas soalheiras
de magnas epifanias

Tinha que haver dentro das coisas
uma lembrança de sol
uma nesga de luz
que a parede da sombra
não havia engolido.

Sob o cílio do omnipotente
tocou a noite no seu silêncio sacro
coletou todas as palavras
penduradas na sua rigidez definitiva
e num sorriso a morder-se a si próprio
logrou pérolas no desvelamento dos mistérios do mundo

Afinal quem fomos, o que somos e o que seremos?

De peito largo de sonho
e num olhar de lobo
regressou à pátria
que não era mais que uma casa em ruína

Perante o desfocar súbito do futuro de todas as interrogações
apenas um hino da revolução lhe bastava
para derrubar os embustes
salinizados na boca
dos inquilinos deste povo.

Só um sítio
podia concentrar a eternidade
cognitiva dos instantes.

Seus pupilos recebiam luz
com o deslumbre de uma folha
que lhes caía o colo.

No renque do pensamento
sempre a exulta arquitetura da palavra
e de bolsos repletos de alfabeto
esculpiam a vida
como uma eterna nascente
a agigantar-se na sua biografia.

Ante a desertificação da esperança
sempre as mãos em concha
nas raízes do amor
a anunciar um silêncio vadio
na uterina razão do pensamento

Esta é a simplicidade do princípio
de todas as árvores - era sabido.

Uma asa aguda a entregar
o vítreo cabaz dos frutos silvestres do conhecimento.

Não há orfandade de valores
no berço da dignidade
nem crepúsculo
no milagre da flutuante molécula da revelação.

O Raiano
Uma seiva de maré
Uma voz peregrina no coração da pedra
Uma breve ardência que atinge o corpo da língua
Um verde de alma na artéria do encantamento
Uma rúbrica na lucidez.

Permanecerá

Vivo ou morto!


Sentado no tempo

Rugas são sulcos 
por onde escapa a prosa em gotejos de sonho inacabado
só a estesia do silêncio 
guarda a poesia do lancinante verde oliva do teu olhar.
sem falar do bico das aves...

Ensina o predatório tempo
a autofagiar a crença

Num entardecer junto ao rio
não penses com verbos
pensa como as folhas
que ensinam o outono
a aninhar-se à queda do ouro.

Ergue impérios de sabedoria
sem a ousadia de fazer parte

Deixa que ao longe a luz do amor
ilumine a calçada
mesmo sabendo do extermínio do mundo
sem paragem
displicente, em desvario

Crava os dedos na terra
e espera que essa letargia traga sementes de coragem
nos intermináveis dias de ausência

Os mesmos que obrigam a sorrir... ou a morrer!

Impulso

É o teu sorriso que planta os lírios no meu caminho.
Sem essa luz, o horizonte é terra queimada infértil ao amor.
Se cerrares os lábios, guarda a memória de um rouxinol
Que canta por não saber fazer mais nada.
A solidão é lavada com água cristalina que brota de uma fonte que não se pode ver.
Cegos são os que acreditam que um momento de felicidade é a razão da vida.
Tudo existe para além do que sabemos.
E é a alegria de saber esperar que nos diz o quanto vivos estamos.
O tempo só existe para os que se recusam envelhecer.
Tudo se pode trocar por uma flor
Uma única flor...Aquela que tem o teu nome.

Ocasião

Tuas mãos desaguam no silêncio
E só elas libertam as palavras
Matizantes do teu olhar.

Um tempo voraz este que acontece
Machuca a nitidez doirada dos trigos

Deita metade da vida de uma mulher
Irremediavelmente nas garras da solidão
Agora o remédio é deixar a vida correr

Fascinante como um rio sem paragem.
Entenda-se que nenhuma ferida faz ninho
Logo ali aonde os versos libertam ninfas
Inteiras cidades de luz
Zelam pelo teu sonho

Sempre aquelas mãos...
Imaculadas
Livres para tocar a pele
Violinos são que tinem delicadas notas
Implorando para dizer apenas:
Amo-te.

Manifesto da permanência

Ainda se pode flagrar o amor nos umbrais da sua haste
na fuga que renasce todos os dias
no circuncentro da tentação e sonho

Uma memória, um braço de mar
uma ave, um raio de sol.
a vida gritada com a boca do coração

E no luar dos meus olhos
apenas o teu rosto
Permanece!

Esperanças

São os dedos que despregam as letras
A sua predição mais que marca
Tinta a alma
São eles que escrevem versos no teu rosto

O tempo é faminto
Transporta a poeira da civilização
Para oráculo do teu silêncio
Larga o melhor da tua vida no gadanho dos grifos

Os pés tornam-se pesados ante a intrepidez das diligências
Os olhos perdem a nitidez na exaltação da memória
Não adianta perder tempo para descodificar o que está escrito sobre a língua

A vida corre como um rio sem paragem
Leva a ferrugem da humanidade para o mar
Adia o sonho em cada impulso
Decepa toda a música sobre um céu cego

Não há condescendência com o canto da cigarra
Vive obstinado com a sua função:
A foice
Nada sobrevive
Nada sobra a não ser as mãos
Carinhosas
As mesmas que pousam na tua pele na ânsia de te dizer apenas:

Vem comigo.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Somos assim

Somos aves já sem sombra sobre a terra.
Variações no limiar do olhar.
Um fio de luz que rasga o céu.
Somos a terceira margem num rio de metáforas.
Agitação no suor de uma lua nova.
Uma estrada sem paragem rumo à raiz dos carvalhos.
Somos a música que escapa à harpa.
Notas brancas que rebentam no peito.
Mãos esticadas à memória dos segundos.
Somos pedras esculpidas que caiem do olhar.
Templos romanos sufragados no amor.
O alicerce que nega a dor.
Somos a hábil fuga do silêncio.
Donairosas representações da viagem.
A ortografia do mel.
Somos tudo.
Somos nada.
Um ponto.
Um porto.
Um beijo.
Uma flor.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Corcel

É tarde demais para descodificar o frémito declive das palavras sob a língua.
Um corcel despreza os estilhaços do espelho medo e corre indomável no asfalto do sonho.
Tanto mar no precipício do destino...
Tanto azul no pulsante querer da cal que dá cor às rosas.
Tanta sede no bico dos seios que escorre no peito o gosto ausente da língua.
Fustiga-me com o espiral voo dos pássaros sobre o mel da loucura.
Arranca-me das mãos o sal das lágrimas amotinadas no ventre do outono.
Traz-me todas as cores do arco-íris na tempestade do desejo.
Agarra-me pela cintura e acompanha-me no absoluto tango do prazer.
E a tremer traz-me à boca o gosto das amoras silvestres.
Deixa ficar na tua pele a cor do entardecer.
No teu cabelo vestígios de saliva e de pecado.
Nos teus olhos o brilho de todas as estrelas.
E no teu sorriso segredos de Apolo.