terça-feira, 18 de janeiro de 2011

No inverno da alma

Neste cruel inverno que me sufoca as veias
Aprendo a sonhar lentamente
Em todas as extensões da excessiva noite
Sigo a interminável rota das aves do sul
Observo num olhar congelado
Os braços abertos das austeras palmeiras
Suspensas estão as viúvas da alegria
As primeiras chuvas cercam a carne

Cristalizo a negação das rosas
Nas ruínas de um barco sem velas
Navego ao contrário dos ventos
Para ensinar a solidão a florir
Sem ouro nas algibeiras
Acordo capciosamente o amor
Que se faz ao mar já perto da morte
Como um hino empurrado contra a sombra

Se alguém perguntar por mim
Digam que ardi na grande noite de lua cheia.

2 comentários:

  1. O Peixe e o Mar

    "Uma vez pediram a um peixe para falar do mar.
    - Fala-nos do mar - disseram-lhe.
    - Dizem que é muito grande o mar, respondeu o peixe. Dizem que sem ele morreríamos. Não sou o peixe mais indicado para vos falar do mar. Eu, do mar, o que conheço bem são estes dez metros à superfície. É só deles que vos posso falar. É aqui que passo o meu tempo, quase sempre distraído. Ando de um lado para o outro, à procura de comida ou simplesmente às voltas com o meu cardume. No meu cardume não se fala do mar. Fala-se das algas, das rochas, das marés, dos peixes grandes e perigosos, dos peixes pequenos e saborosos e de que temperatura fará amanhã. O meu cardume é assim: eles vão e eu vou atrás deles.
    - Mas tu, que és peixe, nunca sentiste o mar?
    - Creio que o sinto, às vezes, ao passar-me nas guelras. Umas vezes sinto-o, outras não. Às vezes sinto-o, quando não me distraio com outras coisas. Fecho os olhos e fico a sentir o mar. Isto tudo de noite, claro, para que os outros não vejam. Diriam que sou louco por dar tempo ao mar.
    - Conheces o mar, portanto. Podes falar-nos do mar?
    - Sei que é grande e profundo, mas não vos quero enganar. Sei de peixes que já desceram ao fundo do mar. Quando os ouvi falar percebi que não conheço o mar. Perguntem-lhes a eles, que vos saberão falar do mar. Eu nunca desci muito fundo. Bem, talvez uma ou duas vezes...Um dia as ondas eram tão fortes que eu tive de me deixar levar muito fundo, para não morrer. Nunca lá tinha estado e nunca esquecerei que lá estive. Apenas vos sei falar bem da superfície do mar...
    - Foi mau, quando desceste? Por que voltaste à superfície?
    - Não foi mau. Foi muito bom. Havia muita paz, muito silêncio. Era como se fosse lá a minha casa, como se ali eu estivesse inteiro.
    - Por que não voltaste lá ao fundo? Por preguiça?
    - Às vezes acho que é preguiça, outras vezes acho que é medo.
    - Medo? Mas tu não disseste que era bom? Medo de quê?
    - Medo do desconhecido, medo de me perder. Aqui à superfície já estou habituado. Adquiri um certo estatuto para mim mesmo. Controlo as coisas ou, pelo menos, tenho a sensação de as controlar. Lá em baixo não sei bem o que me pode acontecer. Estou todo nas mãos do mar.
    - Tiveste medo, quando chegaste ao fundo do mar?
    - Não tive medo algum. Era tudo muito simples...E no entanto agora tenho medo...Mas eu não cheguei ao fundo do mar! Apenas estive menos à superfície.
    - E o que dizem os outros, os que lá estiveram?
    - Dizem coisas que eu não entendo. Dizem que é preciso ir para perceber. E dizem que não há nada de mais importante na vida de um peixe.
    - E explicam como se vai?
    - Aí é que está. Explicam que não se chega lá por esforço, que só podemos fazer esforço em deixar-nos ir. Que é só o mar que nos leva ao mar.
    Então veio uma corrente mais forte que o fazia descer. O peixe tentou lutar contra ela com quantas forças tinha, à medida que via distanciarem-se as coisas da superfície. Talvez para sempre...Mas depois fechou os olhos, confiou e já sem medo deixou-se ir."
    Nuno Tovar de Lemos

    Se alguém perguntar, digam que talvez tivesses ido procurar o mar...

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