quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O império das causas menores

No mais profundo clamor da tua sede pediste-me um poema. 
Não sabias que eras a própria poesia. 
Que pena não ter um lápis que escreva o perfume das rosas em botão 
que limpe a poeira que vai turvando o mel dos teus olhos. 
Estarás viva nos lívidos recantos da memória 
enquanto a tua sombra permanecer no vento 
e retire do ar o meu único sustento. 
Praia do além, 
flor de miragem, 
como pudeste deixar que os putrificados albatrozes sociais 
te colocassem um elmo na cabeça 
e um florete na mão para assassinares o teu próprio coração? 
Nunca fareis da minha alma sargaço do vosso gáudio, 
não colocareis grilhetas nos meus olhos, 
porque navego num barco de papel 
que transporta a fúria de Circe 
que degela a inundação excrementosa dos vossos instintos. 
Quebraste a sacralidade do amor, 
mas o teu olhar ainda cai lindo no pátio do meu dorido sofrimento. 
O que resta daquele tempo não é saudade, 
antes o sabor do teu corpo de orquídea selvagem. 
Olho o céu. Cerro os dedos na candente trança da sabedoria das estrelas. 
Quero elevar-me da inóspita falésia 
que serve de abrigo aos negros anjos que inundam o mordaz tempo que acontece. 
Estou preso nos interstícios da loucura. 
Amarrado em obeliscas condenações. 
Não te amo nem te esqueço. 
E tu rio de águas pálidas leva-me para o reino dos adormecidos. 
Agora, enquanto é tempo. 
No império das causas menores, 
a semântica do meu sorriso, 
a alegria dos meus dias, 
o fulgor da minha paixão, 
o sentido da minha vida 
vale três papéis, dois serviços de mesa, um casaco, 
um poema e uma dourada caixa de afins. 
Eis o fruto da minha alteridade... 
Abandono irremediável do Mito Andrógino. 
Como a vida é puta para mim!

2 comentários:

  1. como é bom quando as palavras se aninham para significar. Como é bom quando o que fica por dizer já não é necessário ser dito.
    Gostei muito...

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  2. Como me identifico com estas palavras...
    Magnífico!

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